03/12/2013

Amei demais


Madruguei demais. Fumei demais.
Foram demais todas as coisas que na vida eu emprenhei.
Vejo-as agora grávidas. Redondas.
Coisas tais, como as tais coisas nas quais nunca pensei.

Demais foram as sombras. Mais e mais.
Cada vez mais ardentes as sombras que tirei
do imenso mar de sol, sem praia ou cais,
de onde parti sem saber por que embarquei.

Amei demais. Sempre demais.
E o que dei está espalhado pelos sítios onde vais
e pelos anos longos, longos, que passei

à procura de ti. De mim. De ninguém mais.
E os milhares de versos que rasguei antes de ti,
eram perfeitos. Mas banais.


Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

16/11/2013

o "Eu" e o "Tu"



--- li em tempos um texto que me ditou o quanto poderia ter sido na vida, se um dia não tivesse encontrado a fronteira entre o "Eu" e o "Tu".
Tu...porque um dia me deixas-te ler nos teus olhos o quanto tinhas para me dar...
Para te construir misturei tudo o que tinha na minha mão e o que tinha no coração e mais ainda a virtude de te olhar.
Acrescentei a força do vento, a naturalidade da água, o forte trago do mel, o sabor exaustivo da fruta que um dia colhi sem que estivesse madura.
Queres ver, ainda não consegui conjugar os verbos que a professora me ditava e os que o meu pai se limitava a repetir.
Hoje já nem sei o que me falta, talvez o ondular das searas no meu olhar fizeram  com que o meu amanhecer foi tão incompatível com o teu habituado aos comboios, aos aviões e ao deambular das fábricas que moviam o teu mundo.
Li um dia que pudemos ser felizes com o barulho dos outros, mas incomodados com o nosso próprio barulho...talvez fosse isso que eu sentia! Talvez a melodia que me tinha sido imposta pela vida não fosse a mesma que haveria escutado, talvez as notas da minha guitarra, teriam sido o tilintar da foice sobre as espigas...talvez! Sim! Talvez!!!
E nas encostas do monte sonhava a planície,em pantufas leves, tão leves que pareciam invisíveis no meu estado de caminhar.
Ditas-te me palavras que nunca ouvi, razões que desconheci, ditas-te me o sabor dos breves instantes, a força das grandes verdades, mas nunca me construíste, tal como eu te construí...envolveste-me como se fosse uma pérola, guardas-te me como se fosse o melhor diamante que possuías,tudo isso, mas não me construiste!
Quero escrever com todas as letras o frio que me provocas, quando dizes que sou linda, linda era eu nas margens do meu rio, cantando as cantigas de embalar que a avó me cantou, linda era eu quando chorava às escondidas a dor de não saber a tabuada,e por esses motivos encerrava-me em mim e sonhava, sonhava o dia desigual entre todos, o dia de te conhecer, para te construir, para me sentir construida.
Repito-me quando te digo que um dia li um texto que me falou de ti, apenas errei porque nunca o li...


Toia in conversas com a lua

15/11/2013

"Solidão" por Fátima Irene Pinto



Solidão não é a falta de gente para conversar,
namorar, passear ou fazer sexo...
Isto é carência!

Solidão não é o sentimento que experimentamos
pela ausência de entes queridos que não podem 
mais voltar...
Isto é saudade!

Solidão não é o retiro voluntário que a gente
se impõe, às vezes para realinhar os pensamentos...
Isto é equilíbrio!



Solidão não é o claustro involuntário que o destino
nos impõe compulsoriamente para que revejamos a
nossa vida...
Isto é um princípio da natureza!

Solidão não é o vazio de gente ao nosso lado...
Isto é circunstância!

Solidão é muito mais do que isto...

Solidão é quando nos perdemos de nós mesmos
e procuramos em vão pela nossa Alma!

Foto: Parque de Serralves, Março de 2013

"Fim da Noite" por Adolfo Casais Monteiro


A nossa história é simples: somos
neste momento todo o amor na terra
e nada mais importa, senão
o que sou, verdade em ti,
o que és, verdade em mim.
Por isso este poema talvez não seja
mais que um silêncio pela noite,
nem verso, nem prosa, só
uma oração ao deus desconhecido.


























Não é talvez senão o teu olhar,
e tua esquiva mágoa,
o teu riso e tuas lágrimas.
E o apelo dentro de mim
ao milagre de nos querermos,
com a mágoa e com o riso,
- e teu olhar que vê em mim.

Não sei pedir, sei só esperar.
Mas já houve o milagre. Estava
agora comigo ao longo das ruas, que antes
eram só casas de pálpebras cerradas.
Estava no silêncio, que antes
era mortal.

E tu, sem eu saber, estavas comigo.
E sem eu saber de súbito na treva
buliram asas
e sem eu saber era já dia.

Foto: Parque de Serralves, Março de 2013

Noite Transfigurada


Criança adormecida, ó minha noite,
noite perfeita e embalada
folha a folha,
noite transfigurada,
ó noite mais pequena do que as fontes,
pura alucinação da madrugada
– chegaste,
nem eu sei de que horizontes.

Hoje vens ao meu encontro
nimbada de astros,
alta e despida
de soluços e lágrimas e gritos
– ó minha noite, namorada
de vagabundos e aflitos.

Chegaste, noite minha,
de pálpebras descidas;
leve no ar que respiramos,
nítida no ângulo das esquinas
– ó noite mais pequena do que a morte:
nas mãos abertas onde me fechaste
ponho os meus versos e a própria sorte.


Eugénio de Andrade, in "As Mãos e os Frutos" (1948)

"E porque haverias de querer..." por Hilda Hilst


E por que haverias de querer minha alma
na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas,
obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
nem omiti que a alma está além, buscando
aquele Outro. E te repito: por que haverias
de querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

Domingo à Tarde


Querida Toia,

Desde 2008 que tenho por costume adquirir livros em alfarrabistas. Primeiro namoro-os, examinando a sua roupagem, os seus aromas, a sua idade, a textura das suas páginas, lendo de través o verso da contracapa. De seguida, recoloco-os na estante de modo a saber se querem vir comigo - ponto assente e obrigatório é que os vendam a preços módicos, caso contrário, é pouco provável que os traga -, ou se, pelo contrário, preferem ficar ali à coca de mãos mais suaves, abastadas e experientes. Acontece, por vezes. O primeiro dos meus livros - sim, é sobre ele que te falo hoje -, inegociável por razões afetivas, foi trazido quase clandestinamente para casa. Li-o, expectante, tempos mais tarde e reli-o agora pelo facto de o esquecimento das suas variações se ter apossado de mim (Fernando Namora é o autor e 1961 o ano em que foi dado à estampa). Trata-se de um romance em que as duas personagens centrais, Jorge, médico e narrador, e Clarisse, doente com leucemia, circulam uma em torno da outra numa empatia que, apesar de desconfiarmos do desfecho menos benévolo da trama, as entrelaça e conduz a uma das questões mais profundas no ser humano em todos os tempos e lugares, a da sua vulnerabilidade. Ao relê-lo, e são apenas duzentas páginas de caminho, percebi e percebemos facilmente que urge viver passo a passo, dia a dia, construindo lentamente, definindo metas, trabalhando com afinco e desfrutando o mais possível do melhor que há na vida.

José

Foto: Águas Férreas, Novembro de 2013

De madrugada



Estou a escrever de madrugada e começo a sentir-me fatigado. No quarto ainda é noite, embora o halo receoso que atravessa o vidro fosco da porta tenha vindo a aproximar-se sorrateiramente do cone de luz clandestina que incide sobre a secretária. Há anos que projeto substituir por um retângulo de madeira aquele vidro desabitado que às vezes me traz a alvorada antes que eu a deseje. Mas vou adiando sempre. Talvez porque espere que, através dele, voltem a ecoar-se os vultos, o rumor agitado da casa, de quando eu era menino e tinha birras e doenças imaginárias só para negociar a minha anuência aos remédios com a promessa de me deixarem calçar umas botas brancas. Umas botas saloias tal como as do Zé Fadista – o gaiato mais feliz do bairro, porque vestia e calçava tudo o que nos era interdito. De há muito que o halo não tem sombras nem rumores: apenas a madrugada sem corpo e sem voz, e enorme porque ninguém a preenche. Certas manhãs ficava acordado olhando o retângulo insidioso, recusando-se a admitir que o dia nascera, temendo a evidência da solidão. O mundo morava longe, muito para lá da porta, vinha-me dele um frémito longínquo. Agora, porém, o vidro fosco já não me aturde com essa espécie de despertar pavoroso e lívido. Agora sei que o pavor nos faz aproximar as coisas, habitá-las, que pelo amor as reconhecemos e que, depois de lhe recebermos a revelação, nada mais é preciso para nos sentirmos vivos.

Como foi possível escrever eu isto? Tenho os membros espessos da insónia. É a fadiga que nos amolece.

Fernando Namora, in “Domingo à Tarde” (1961)


Foto: Águas Férreas, Novembro de 2013 

14/11/2013

Ausência

Eu deixarei que morra em mim
o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar
senão a mágoa de me veres eternamente exausto
No entanto a tua presença
é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto
existe o teu gesto e em minha voz a tua voz
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim
como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar
uma gota de orvalho
nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne
como nódoa do passado
Eu deixarei...
tu irás e encostarás a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos
e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite
e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa
suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só
como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém
porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar,
do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente,
a tua voz ausente,
a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes


13/11/2013

A minha noite






abro os meus braços
sobre mim e sobre ti
este é o mar que me sufoca
o fogo posto
que me queima

a minha lua que me despe
a minha fonte de água pura
a minha noite
no teu dia

Toia in poemas "pequeninos"

Ilust - Ilisa Ivans

"Saudade"


Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono.

Mia Couto



02/11/2013

"Somos a primeira pessoa do plural" - por José Luís Peixoto

Imagem do filme Baraka
«Estamos tão perto uns dos outros. Somos contemporâneos, podemos juntar-nos na mesma frase, conjugarmo-nos no mesmo verbo e, no entanto, carregamos um invisível que nos afasta. Ouvimos os vizinhos de cima a arrastarem cadeiras, a atravessarem o corredor com sapatos de salto alto, a sua roupa molhada pinga sobre a nossa roupa a secar; ouvimos a voz dos vizinhos de baixo, dão gargalhadas, a nossa roupa molhada pinga sobre a roupa deles a secar; cheiramos as torradas dos vizinhos do lado, ouvimo-los a chamar o elevador e, no entanto, o nosso maior problema não é apenas não nos reconhecermos na rua. O nosso problema grande é estarmos convencidos que os problemas deles não nos dizem respeito. A nossa tragédia é acharmos que não temos nada a ver com isso.

Há três ou quatro anos, caminhava com um conhecido no aeroporto. De repente, ouviu-se um estalido. Ele agarrou-se ao peito com as duas mãos, caiu de joelhos e, pálido, esperou por morrer. Não morreu. Tinha-lhe rebentado um isqueiro no bolso da camisa. Aliviado, encostado a um balcão, a beber um copo de água, explicou que esse ardor repentino e esse susto pareceram-lhe um ataque cardíaco. Nunca tinha tido um ataque cardíaco antes, por isso confiou em descrições vagas, a que nunca tinha realmente prestado muita atenção.

Há alguns anos também, talvez um pouco mais do que três ou quatro, tinha acabado de participar num jantar cordial, reconfortante. Toda a gente estava bem disposta, à porta dos anfitriões, longa despedida, graças, à espera de táxi. De repente, tocou o telefone de um senhor com quem tinha estado a conversar durante todo o serão. Ninguém reparou nesse telefonema até ao momento em que o senhor começou a chorar convulsivamente. Ficámos todos a olhar sem saber como chegar até ele. Tínhamos braços, estendíamo-los na sua direcção, mas continuavam distantes.

Irritamo-nos com a existência uns dos outros. Fazemos sinais de luzes àquele homem com setenta anos, num carro dos anos setenta, que anda a setenta quilómetros por hora na auto-estrada. Contrariados, esperamos por aquela pessoa que atravessa a passadeira, enchemos as bochechas de ar e sopramos. Impacientes, batemos no volante. Daí a minutos, depois de estacionarmos o carro, somos essa pessoa a atravessar a passadeira. Da mesma maneira, daqui a algum tempo, não muito, seremos esse homem com setenta, dos setenta, a setenta. O tempo passa. Se deitarmos lixo para o chão, alguém o apanhará.

Um amigo que teve um AVC, que passou por uma reabilitação profunda, que enfrentou a morte e a paralisia, depois de anos de fisioterapia, depois de esforço gigante e sofrimento gigante, falou-me da forma como esse susto muda tudo. Passa-se a apreciar aquilo que realmente importa. A imensa maioria das preocupações transformam-se em luxos ridículos, desprezíveis, alimentados pela cegueira. Após essa experiência de quase morte, ganha-se uma nitidez invulgar, que, no entanto, esteve sempre lá. Para percebê-la, bastava levar a sério a promessa de transitoriedade de tudo e, também, levar a sério essa palavra, esse planeta: o amor. Ao ouvi-lo, fui capaz de entender aquilo que dizia. Depois, também fui capaz de entender quando me disse: mas, sabes, ao fim de algum tempo, esquecemo-nos, voltamos a tomar tudo por garantido e voltamos a cometer os mesmos erros.

Repito para mim próprio: estamos tão perto uns dos outros. Não há nenhum motivo para acreditarmos que ganhamos se os outros perderem. Os outros não são outros porque levam muito daquilo que nos pertence e que só pode existir sendo levado por eles. Eles definem-nos tanto quanto nós os definimos a eles. Eles são nós. Eles somos nós. Se tivermos essa consciência, podemos usar todo o seu tamanho. Mesmo que pudéssemos existir sozinhos, de olhos fechados, com os ouvidos tapados, seríamos já bastante grandes, mas existe algo muito maior do que nós. Fazemos parte dessa imensidão. Somos essa imensidão que, vista daqui, parece infinita.»

A tua falta incomoda-me, meu anjo!







Faltam as manhãs contigo, faltam as noites em que acordo com o barulho da tua ausência, não entendo porque me deixas-te o cheiro impregnado dos teus sonhos, que agora fazem parte dos meus, num vazio ensurdecedor de dor e ansiedade.

Acendo a vela com aquela fragrância escolhida por ti com a plena certeza que os anjos voltam sempre aos lugares onde foram felizes.

Porque não me falas, meu anjo?

Porque a sombra das tuas asas me faz tanta falta?

Dou por mim saboreando o ontem, porque o hoje é tão mais amargo...e o amanhã é a cortina que absorve todos os sabores, até o teu que é indiscutivelmente único:

Perco-me nas ruas de sentido proibido, transporto em mim todos os ingredientes deliciosos para que seja mais fácil encontrar o teu destino.

Navego mar adentro em direção ao teu porto, como se fosse fácil saber o mar em que um dia naufragas-te e te salvas-te, sabendo eu que fui a tua boia de salvação.

Hoje, sou eu a ouvir o teu silêncio,hoje sou eu que perdi as minhas asas, e nada sei senão imaginar que o meu mar está tão longe do teu céu.

Hoje sou eu a chorar a tua dor,a correr em contra mão, a desnudar o que resta de mim, estou tão só que o meu olhar se perde para lá do horizonte, estou tão ausente, que oiço o silêncio no meio da multidão barulhenta.

Só sei que me fazes falta com a luz do teu sorriso,faz-me falta olhar e contemplar o teu rosto, fazes-me tanta falta, que sinto uma asfixia que me imobiliza,fico sem luz e sem amanhã.
Perdoa-me se ainda sabes onde mora a luz dos meus olhos e não a queres acender.

Roubas-te-me as asas e partis-te...

Sinto o céu cair onde já não há chão...

Toia ( cartas para um anjo)

01/11/2013

O Amor, Meu Amor

Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto, in "idades cidades divindades"

Sonho de menina