15/11/2013

De madrugada



Estou a escrever de madrugada e começo a sentir-me fatigado. No quarto ainda é noite, embora o halo receoso que atravessa o vidro fosco da porta tenha vindo a aproximar-se sorrateiramente do cone de luz clandestina que incide sobre a secretária. Há anos que projeto substituir por um retângulo de madeira aquele vidro desabitado que às vezes me traz a alvorada antes que eu a deseje. Mas vou adiando sempre. Talvez porque espere que, através dele, voltem a ecoar-se os vultos, o rumor agitado da casa, de quando eu era menino e tinha birras e doenças imaginárias só para negociar a minha anuência aos remédios com a promessa de me deixarem calçar umas botas brancas. Umas botas saloias tal como as do Zé Fadista – o gaiato mais feliz do bairro, porque vestia e calçava tudo o que nos era interdito. De há muito que o halo não tem sombras nem rumores: apenas a madrugada sem corpo e sem voz, e enorme porque ninguém a preenche. Certas manhãs ficava acordado olhando o retângulo insidioso, recusando-se a admitir que o dia nascera, temendo a evidência da solidão. O mundo morava longe, muito para lá da porta, vinha-me dele um frémito longínquo. Agora, porém, o vidro fosco já não me aturde com essa espécie de despertar pavoroso e lívido. Agora sei que o pavor nos faz aproximar as coisas, habitá-las, que pelo amor as reconhecemos e que, depois de lhe recebermos a revelação, nada mais é preciso para nos sentirmos vivos.

Como foi possível escrever eu isto? Tenho os membros espessos da insónia. É a fadiga que nos amolece.

Fernando Namora, in “Domingo à Tarde” (1961)


Foto: Águas Férreas, Novembro de 2013 

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