Estou a
escrever de madrugada e começo a sentir-me fatigado. No quarto ainda é
noite, embora o halo receoso que atravessa o vidro fosco da porta tenha
vindo a aproximar-se sorrateiramente do cone de luz clandestina que
incide sobre a secretária. Há anos que projeto substituir por um
retângulo de madeira aquele vidro desabitado que às vezes me traz a
alvorada antes que eu a deseje. Mas vou adiando sempre. Talvez porque
espere que, através dele, voltem a ecoar-se os vultos, o rumor agitado
da casa, de quando eu era menino e tinha birras e doenças imaginárias só
para negociar a minha anuência aos remédios com a promessa de me
deixarem calçar umas botas brancas. Umas botas saloias tal como as do Zé
Fadista – o gaiato mais feliz do bairro, porque vestia e calçava tudo o
que nos era interdito. De há muito que o halo não tem sombras nem
rumores: apenas a madrugada sem corpo e sem voz, e enorme porque ninguém
a preenche. Certas manhãs ficava acordado olhando o retângulo
insidioso, recusando-se a admitir que o dia nascera, temendo a evidência
da solidão. O mundo morava longe, muito para lá da porta, vinha-me dele
um frémito longínquo. Agora, porém, o vidro fosco já não me aturde com
essa espécie de despertar pavoroso e lívido. Agora sei que o pavor nos
faz aproximar as coisas, habitá-las, que pelo amor as reconhecemos e
que, depois de lhe recebermos a revelação, nada mais é preciso para nos
sentirmos vivos.
Como foi possível escrever eu isto? Tenho os membros espessos da insónia. É a fadiga que nos amolece.
Fernando Namora, in “Domingo à Tarde” (1961)
Foto: Águas Férreas, Novembro de 2013
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